Programação televisiva estimula a passividade.

“O desenvolvimento saudável das crianças depende muito do quanto elas puderem viver plenamente a infância. É um período surpreendente em que elas estão descobrindo o mundo e construindo sua identidade. Porém, embora elas aprendam com os exemplos, é importante que a iniciativa da imitação seja delas. Uma coisa é crianças imitarem adultos por conta de sua curiosidade natural. Outra, bem diferente, é adultos interferirem nesse gesto espontâneo, sugerindo que elas devem abandonar rapidamente a infância para aderir mais cedo aos hábitos de consumo. Foi Piaget quem disse: Tudo o que se ensina a uma criança, a criança não pode mais, ela mesma, descobrir ou inventar.” 

Maria Helena Masquetti, Graduada em Psicologia pela Faculdade Paulistana de Ciências e Letras. Possui especialização em Psicoterapia Breve e de Emergência e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Graduada também em Comunicação Social pela Fundação Armando Alvares Penteado, em 1983, exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos em várias agências de propaganda e hoje é psicóloga do Projeto Criança e consumo do Instituto Alana. Maria Helena nos concedeu uma entrevista exclusiva sobre este dão delicado assunto, acompanhe a seguir.

Escola Beija-Flor: Quais as principais consequencias para a criança diante da exposição às peças publicitárias deflagradas, principalmente, pela televisão?

Maria Helena Masquetti: Como as mensagens comerciais se dirigem à criança e não aos pais, isso contribui para o enfraquecimento da autoridade paterna fundamental no desenvolvimento infantil. Isso dá a criança uma percepção de maior poder do que ela realmente tem, mas que, de qualquer maneira a estimula a insistir continuamente até convencer os pais. E essa é uma das razões pelas quais hoje (segundo o IBGE) elas influenciam na decisão de 80% das compras da casa. Entre as demais consequências negativas para o desenvolvimento infantil – na realidade são muitas – as mais visíveis tem sido o estimulo ao aumento da obesidade na infância que verificamos hoje. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, 30% das crianças brasileiras estão acima do peso adequado, sendo que 15% delas já são obesas.
A erotização precoce também é outra consequência estimulada pela exposição cada vez maior das crianças a conteúdos impróprios para sua idade e pelo forte apelo de mensagens que anunciam produtos ligados ao mundo adulto tais como roupas, maquiagens e produtos de beleza em geral. Isto valendo-se, na maioria das vezes, do testemunhal de celebridades que gozam da admiração das crianças.
Não menos danoso é o estresse familiar gerado também pela quantidade de “nãos” que os pais se veem obrigados a dizer aos filhos face aos tantos pedidos que estes são induzidos a lhes fazer continuamente. A falsa ideia de felicidade transmitida nas mensagens onde os consumidores dos mais diversos produtos aparecem sempre felizes e bem sucedidos colabora muito para o descontentamento das crianças e adolescentes em relação à sua família real.
Em relação ao aumento dos índices de violência, a comunicação mercadológica também tem sua visível cota de participação uma vez que os produtos passam a funcionar como ingressos sociais por tocarem numa questão muito sensível para as crianças e adolescentes que é o temor da exclusão. Isso contribui muito para que muitas crianças, de baixo ou nenhum poder aquisitivo, acreditem que basta ter o tênis, o celular ou a mochila da moda, por exemplo, para a serem aceitos socialmente. Tanto é assim que uma pesquisa da Fundação Casa (antiga Febem), revelou que, dos crimes cometidos pelas crianças e adolescentes recolhidos àquela Instituição, 56% foram de roubos qualificados contra 14% de atentados contra a vida, evidenciando esta crença dos menores na obtenção de bens de consumo como forma de ascensão social.

BF: As crianças estão diante de dois problemas? O tempo de exposição à televisão – independentemente do conteúdo da programação – e o de ficar expostas aos conteúdos publicitários?

MH: Pode-se dizer que sim tanto pelo fato das programações de TV deixarem muito a desejar em termos de qualidade, quanto pelo bombardeio contínuo das mensagens comerciais. Para se ter uma ideia do tamanho desse bombardeio, em outubro de 2010 o Projeto Criança e Consumo monitorou 10 horas ininterruptas da programação de 5 canais fechados e 2 abertos de TV, apurando que as crianças ficaram sujeitas a mais de 1.000 inserções comerciais em apenas um dia. Isto contribui para um encurtamento da infância no que diz respeito ao tempo em que elas ficam passivas em frente à um entretenimento que já vem previamente criado, em lugar de estarem brincando, compartilhando e adquirindo uma visão de mundo a partir de experiências reais seja no contato com a natureza ou no contato humano.

BF: Por que a televisão ganhou tamanho poder de influência na vida das pessoas e das crianças?

MH: A programação televisiva tem características visuais e estratégicas de comunicação que estimulam a passividade por conta da linguagem de fácil entendimento tanto pelas crianças como pelos adultos, pelos recursos visuais estimulantes e pela transmissão contínua de fatos de agucem a curiosidade. Noticiar que mais um bebê nasceu ou mais alguém se casou, não daria a mesma audiência que noticiar um assassinato, por exemplo. Isto tende a prender a atenção, principalmente das crianças que não tem condições de entender esse tipo de artifício. E num país como o nosso onde a criança brasileira é a que mais assiste TV no mundo isso torna-se particularmente mais grave. Segundo o IBOPE, elas passam 4h54 minutos por dia em frente à TV sujeitas a um grande número de mensagens impróprias a sua idade, além da avalanche de comerciais.

BF: Por que o consumo e a compra (como visto no documentário – Criança, a alma do negócio) são atividades mais atrativas às crianças do que o ato de brincar e as brincadeiras?

MH: Por estarem em formação, as crianças precisam de referenciais adultos para construírem sua identidade e, sendo ainda ingênuas, acreditam no que ouvem e veem desse mundo adulto. A publicidade se insere nesse contexto adulto e fala com a criança diretamente afirmando, na maioria de suas mensagens, que “Todo mundo está usando”, “Todo mundo está comprando”, “Só falta você!”. Isto sempre somado à presença de várias crianças anunciando o produto, reforçando a ideia de que só a criança telespectadora é que ainda não têm e tocando fortemente no temor da exclusão que mencionei. Isto induz cada vez mais as crianças a ficarem preocupadas em ter os produtos anunciados para se sentirem inseridas em seus grupos e a terem, consequentemente, sua atenção cada vez mais desviada do brincar para o comprar.

BF: Quais as principais atividades que o instituto promove para reverter essa situação?

MH: O projeto Criança e Consumo pauta seu trabalho por meio de duas frentes: a conscientização e a educação. Assim, a atuação se divide em realização de palestras para pais e educadores, cursos para capacitação de multiplicadores e organização de eventos sobre o tema do consumismo na infância. Cabe à área jurídica do Projeto o acolhimento e encaminhamento aos órgãos competentes de denúncias vindas da sociedade sobre publicidades consideradas abusivas à formação das crianças e adolescentes.

BF: Como os pais podem contribuir neste processo? Como os pais devem agir para evitar que seus filhos se tornem consumidores antes mesmo de terem uma infância?

MH: Criar hábitos familiares que não envolvam o consumo é um bom caminho. É importante então estimular a criança a brincar com outras crianças de modo a terem a oportunidade de criar suas próprias brincadeiras e de exercitarem a troca com outras crianças. A leitura, claro, é um grande aliado dos pais para isso. De preferência, não deixar aparelhos de TV ou computadores no quarto das crianças e conhecer e fiscalizar os programas, sites, games e filmes que as crianças assistem. Reforçar e apoiar comportamentos saudáveis é importante também por ajudar a criança a se sentir estimulada e a reconhecer em si qualidades que independem de seu poder aquisitivo.

BF: A publicidade coloca, muitas vezes, os filhos contra os pais, e os últimos, por medo ou compensação, acabam cedendo aos desejos dos filhos. Muitos pais têm receio de causar algum dano psicológico aos filhos ao negarem a compra, o tal passeio, a tal marca. Qual conselho daria para eles?

MH: A estratégia publicitária, entre outras táticas persuasivas, visa induzir as crianças a amolarem os pais até que estes lhes comprem o que estão pedindo. Dessa forma, enquanto a publicidade diz sempre “Sim, você pode”, “Sim, chegou a sua vez”, sobra para os pais a tarefa espinhosa de terem que dizer aos filhos muito  mais “nãos” do que seria razoável. Assim a publicidade concorre de maneira antiética com os pais na educação dos filhos, colocando-os, de certa forma, contra a parede como se dissesse: “Você vai negar o que seu filho está pedindo, fazendo com que ele se sinta excluído de seu grupo?”. Um conselho a estes pais é não se deixarem influenciar por este tipo de pressão estratégica, evitando se sentirem culpados ao dizerem o “não” quando necessário e explicitando aos filhos as razões que os levam a dizer os “nãos”. É uma ocasião propícia, afinal, para ensinar aos filhos, com firmeza protetora, que não se pode ter tudo e que o consumo dever ser baseado mais nas necessidades do que  nos desejos e que, mesmo estes, devem ser satisfeitos de forma razoável. Além disso, eles devem confiar na própria autoridade e no poder de suas palavras para os filhos, ensinando-os que eles não precisam de produtos e marcas para serem amados e aceitos.

BF: Como a escola pode corroborar no processo de conscientização dos pais e das crianças quanto às armadilhas da publicidade?

MH: A escola é o cenário que permite às crianças desenvolverem valores, o respeito pelo outro e a percepção de que seus atrativos não estão nos objetos nem em atributos físicos que possam ostentar e sim nas habilidades, talentos e conhecimentos que possuem. Assim, evitar a entrada na escola de toda e qualquer publicidade ou empresas que anunciem para crianças, por mais educativas que se digam ser, é fundamental. A sintonia entre os pais e a escola possibilita um consenso para que as crianças não façam da escola um espaço para competição de poder material.

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